desatina
poesia é uma palavra feminina
depois do banho quando a umidade colava pela parede alguns pêlos e eu na angústia que se materializa num banheiro pequeno tentava enxugar algo que não fossem lágrimas em busca de alento entendi naquele momento que alguns daqueles cabelos ainda eram de você essa cena descrita em poesia é pra tentar expressar a agonia do segundo que se entende que o presente já tem data pra deixar de acontecer e ninguém se presta a vir informar que em poucas horas tudo vai mudar não são só fios no banheiro mas também os cheiros que vinham das cafungadas estendidas pelos nossos dias e nucas dando lugar a esse aroma ocre do nunca mais vai acontecer
um cheiro vazio ecoa como um ping pong entre as paredes e de tão fétido me deixa com sede disso que eu já tive só pra nunca mais ter
olhou pro portão e ficou feliz com a eminência de ninguém ali aparecer
faria sentido pensar que aquela semana foi algo entre a moral & o profano. uma coisa de referências entre jane austen & only fans.
naqueles dias foi tudo rebuscado na esquecida razão de enfrentar tendências que a assombravam. com a luz amarela do quarto se sentiu protegida e sabe-se lá porque pensou na palavra égide. "sob a égide". aquele escudo que Atenas deu pra Zeus.
sob a égide da luz amarela do seu quarto experimentava depois de muito tempo essa sensação de ter na defesa uma arma. quanto tempo de guarda baixa e matando no peito, sempre cheio & estufado, toda a sorte de sentimentos alheios que a atravessavam e que de maneira cíclica acabavam no vazio sob a égide de ter se protegido, dessa maneira redundante mesmo, o peso do escudo era medido pelo estranhamento de se sentir, minimamente, segura. e era esse o momento crucial pro estar só - habitual & querido - virar solidão - temida & inconsequente. fazia muito tempo já que remediava traumas com o vício dos sentimentos. sempre pronta pro que der, vier & doer. essa repetição era quase uma obsessão. uma servidão ao bem estar das narrativas do outro, e para as dela só alguns pedaços de papel ou o aplicativo de notas do celular. os pensamentos tinham desaprendido o caminho de voltarem-se para ela. e olha que eram muitos pensamentos, um fluxo intenso ao ponto dela implorar que eles calassem a boca, mas no fim ela também fazia a vontade deles.
só naquela noite, finalmente, olhou pro portão e ficou feliz com a eminência de ninguém ali aparecer. sentiu um alívio na certeza de que não andaria por aquele corredor com a chave na mão. lembrou que horas antes, voltando da rua, sentiu a mesma felicidade quando fechou o portão que só abriria pra ela própria, se ela quisesse. olhou pra sua casa, e pra luz amarela, como um templo cansado de abrigar aquelas fantasias, deuses e epopeias. de Atenas a Zeus, pouco importa, o escudo, o peso, a égide. era o momento de deixar o estar só e a solidão se abraçarem sem medo. foram muitas lutas pra que ela saísse vitoriosa na guerra contra essa versão de si. mas já não eram mais batalhas pela guerra de ninguém.
aquele anel meio caindo do dedo
e naquela manhã que não iniciou um novo dia já que seguia o fluxo da noite dormida aos mosaicos e aparições eu segui por um caminho usando minhas roupas curtas como todas são e era muito cedo a minha cabeça rodava e o mundo me deixou um pouco insegura mas o caminho era breve e indicado por ti que logo chegaria no meu portão num momento em que eu tivesse pegando sol então eu fui segura e ajudou aquele anel meio caindo do dedo mas pra isso eu precisava ficar segurando e prestando atenção nele o que funcionou mais ainda e de repente eu me vi numa rua estreita que eu nunca tinha andado só passado e consegui olhar pras coisas que me cercam há 8 anos de uma maneira nova meu deus era uma puta manhã reveladora e assim são as revelações aquele filtro que a gente tira das fotos que as vezes nem são retratadas uma catarse um parto do que sempre esteve no mesmo lugar e se vê pronto pra assumir outro e pra isso eu esgotei as músicas os símbolos fechei meus olhos pra só ver o que eu queria e não aquela tela em branco do tudo novo mas o pano preto do fundo das nossas pálpebras onde ficam passando formas parecidas com o dna humano e lá nas entranhas desse corpo e alma eu sabia que o meu caminho de volta era o mesmo que o teu e sentia que meu rosto assumia um formato único se a selfie fosse pra ti e tudo foi parecendo uma cadência uma evolução uma garrafa de champagne guardada pra lembrar e colocar flores dentro e quando chegássemos ao mesmo destino a conta seria 2=1 é soma que já ouvimos o baco cantar tantas vezes mas isso tudo meu amor não passa da minha versão da história que uma vez entregue assume outra narrativa
olá, meu querido
águas de pensamento
depois de verbalizado ficou invertido
virado o curso racional do enumerado
e eu que sempre me agarrei à palavra
escutei de quem pouco a utilizava
uma cadência que me excitava
a quebra a estrada
dizia: vai serena, vai suave.
"Vá, C.
Vai cê, vá se.
Vai, sê de boa, C.
Se dê.
Cedeu, se deu
doeu."
história de emblemas
naquele banco vermelho
tinha laranja no cabelo
sangue na boca
oco contornava o coração
o coração
castanho em torno dos olhos
no banco vermelho
camuflaram-se os pêlos
já nem sabia o que dizia
ativa ativista artista
passiva pacífica paciente
esperando sabendo entendendo
inverno iminente
do banco vermelho saiu
um xoxo muxoxo ou um beijo caído
nem o coração partido
nada pra recolher nada fixo
cansei de ver
daquele vermelho eminente
o descer
um que veio depois quase crendo
o outro desde sempre mas destoando
uma beleza redundante
ao corredor
coragem, agora sim.
+ 01 vez\
- estou te ligando pra te pedir que, por favor, não venha baixinho.
e que se fodam os passarinhos
grite, berre, espante
por favor, seja fulminante.
o lógico agora é ser inconsequente
senta, devora, nem sobra migalha na gente
depois lida
melancolia, ócio, repetição
sempre vem a hora de sentir solidão.
daí a gente entende pra onde o amor nos aponta
dependendo já deixa até a cama pronta.
- beleza, te vejo em uma hora.
good to be free
fui de bicicleta até um topo desses de montanha que permitem a gente ver o crime.
o meu, cadê? acho que saber o caminho de volta pra casa.
agora é a pé, pelo centro da cidade, vendo nos outros o que não sou, preenchendo o que me resta. bate perna, bate boca, batem os sinos, 18h.
a mesmice de saber o caminho de volta pela segunda vez em um dia.
é que daquela velha poltrona dá pra perceber o mundo de fora, nem mais de dentro. não levanto daqui, onde já tenho: lábios, cérebro, nuances e o coração quase escapando pelo teto.
um dia a anarquia me invadiu
sentada na parada viajando às badaladas rimando sem querer.
transeuntes saem como foliões da saúde do consultório do nutricionista, exibindo a última moda fitness. uma vez um velho, que eu quis que fosse um sábio, me disse que o mal do vício é fruto da nossa cabeça. há justificativa pra tudo a partir do momento em que é feito.
segundo a televisão e as capas de jornal que educam para o medo e para a não interação social eu jamais deveria ter conversado tanto com esse rapaz latino americano sem dinheiro no banco que chegou pedindo um cigarro e oferecendo um gole de cerveja.
me sinto premiada com a sensibilidade de não temer e com a beleza do repúdio a estes pedaços de papel e lcd que tentam nos convencer de uma ridícula sobrevivência. aceito o gole e ainda saio rebolando na hora de virar e entrar no ônibus. não é um desperdício.
todos palhaços seguem correndo em torno do picadeiro controlando os batimentos cardíacos com uma máquina sufocadora de braço. quanto a mim: o moço da cerveja é pouca coisa mas tem tantas outras que sinto o coração arrebentar.
manifesto-me do eu
e não mais procurar por afinidade quando for apenas companhia
andar sempre que possível como nua nas ruas
pra sentir que só o vento
ponto sublime que voa os que tem cabelos
único e igual para todos
basta
quando bate ao rosto
com toneladas de verdades
doces
justas
verdades, já que metades não existem
e não bastam
e nessa rua o vento caminha
imune
fazer as ideias ultrapassarem
a linha utópica
que lás distantes levam lavam
enxaguam
uma onça
leoparda
rapte-me de mim que ainda serei eu
logo será o que voltaria
cedo
ou antes tarde do que sempre
o que apenas deveria ser
eu
não mais trocar por meia dúzia
o que pode ser inteira
voltar-se pra mim
já que é o peso de uma enferrujada armadura
a dar pra alguém
o que deveria ser de mim
olha a costura que eu fiz
você é como lembrar de ter folga
é como achar dinheiro no bolso da calça
e nem foi o que importou àquela hora na rua
o bolso costurado à linha e agulha
mão esquentando na esquerda da tua cintura
é como um "se você jurar"
pode ser só por brincar
já tem ali um quê de amor
uma pergunta, um torpor
você é a boca mais macia que eu sempre quis beijar desde ontem
é a preguiça do sol que vem num sábado frio passado no emaranhado de um refúgio
é uma performance em prelúdio de resistência ofegante
duas semanas dos últimos dias sem contentamento
você é uma construção fulminante
que eu quero arrastada no tempo
viva deliberadamente o croissant daquela esquina
mas que me sorria de dobrar esquina
o alerta é amplificado
ressona o charme anunciado
descubro cantos de olhos por onde te via
pretendia que das mesmas armadilhas que já mapeei
fosse a captura daquele amanhã desejado
cantarolo a sua proposta no mesmo ar que me falta
coloco em uma caixinha de acaso
como ir ao banheiro e sem querer entrar no quarto
guiada por um faro viciado
e no dia seguinte, daquela esquina, só o croissant já não é banal
[procura-se a frase que pensei antes de dormir
como um desfecho interminável
que não é bem lá uma perda]
namaste
um dia eu acordei e achei tudo um saco
e saí
correndo pro outro lado do mundo
e daí
levei um tombo no meio do caminho
caí
e agora eu sou feliz.